O impacto do trabalho sobre as mulheres que carregam o mundo: escala 6x1 versus escala 7x0
Informação
Publicado em 06/03/2025

Um dos assuntos do momento é o fim da escala de trabalho 6x1, ou seja, depois de 6 dias de trabalho, 1 de descanso. Trata-se de alterar as clássicas 44 horas semanais de trabalho. 

Os “anti” e os “pró” se manifestam por todos os cantos, na internet, nos parlamentos, nas praças, nos caminhões e manifestações trabalhistas em frente aos locais de trabalho. A comparação que vem viralizando é em relação ao discurso, enunciado por alguns parlamentares que não querem assinar a proposta, de que o fim da escala 6x1 prejudicaria a economia. Assim como, aos seus devidos tempos, também se dizia que a abolição da escravidão e a instituição do salário-mínimo e do décimo terceiro também “acabariam com a economia”.

A discussão toda surgiu com Rick Azevedo, vereador do PSOL recém-eleito do Rio de Janeiro, líder do movimento Vida Além do Trabalho (VAT), que tem mobilizado milhares de trabalhadores e trabalhadoras pela causa. Agora, a proposta vem no caminho da concretização: a deputada federal Erika Hilton, do mesmo partido, acaba de conseguir a quantidade necessária de assinaturas para a propositura da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que, justamente, visa acabar com a escala 6x1.

O texto da PEC faz uma alteração no inciso XIII, do art. 7º, da Constituição Federal, que, basicamente, passa a reconhecer como direito do trabalhador uma “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana”. Os trabalhadores e trabalhadoras, em síntese, deixam de ter que trabalhar seis dias da semana para folgar apenas em um.

Para nós, mulheres, no entanto, existe a  escala 7x0 do trabalho, uma vez que, depois da jornada de trabalho paga, que consta do nosso contrato de trabalho, há os cuidados com a casa e a família. Contextualizando o debate, vamos refletir o impacto dessa medida na vida das mulheres. E ele pode ser sentido numa rápida pesquisa ao Google por “mãe demitida”. São várias as notícias sobre mães que foram mandadas embora do trabalho no primeiro dia de retorno após a licença-maternidade ou por levar o filho à terapia, ao médico ou ao hospital. Não são poucos os casos de mulheres que, por exercer o trabalho do cuidado no pouco tempo que lhes resta, foram afastadas dos seus trabalhos. Nós cuidamos das crianças, dos idosos, dos doentes e de quem mais precisar. Nós, majoritariamente, que, todos os dias, fazemos comida, lavamos louças, limpamos a casa e cuidamos dos filhos, proporcionando o ambiente ideal para que os homens sigam na sua jornada de trabalho fora de casa (ou em home office, claro). E, em geral, esse trabalho, em escala 7x0, sequer é remunerado.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmam essa realidade: são as mulheres que fazem 85% do trabalho do cuidado nos lares brasileiros. Elas se dedicam 21 horas semanais à casa e à família. Em média, são cerca de 10 horas semanais a mais do que os homens. Entre as mulheres que trabalham fora, o problema permanece. Elas cumprem mais de 8 horas a mais em obrigações domésticas do que os homens nas mesmas circunstâncias. Além disso, mais de 2,5 milhões de mulheres não trabalham fora para cuidar dos parentes e das tarefas domésticas. “Desse modo, a divisão sexual do trabalho, base material das relações de gênero e prática cotidiana de atribuir às mulheres um trabalho do qual os homens são liberados, é justificada e permanece como um fator de precarização da vida das mulheres”[3].

Vejam bem: é lógico que a escala 6x1 afeta todas as pessoas. Como vem sendo dito por aí (e é verdade): todo mundo precisa de tempo para viver. Afinal, se a pessoa trabalha 44 horas semanais (na escala 6x1), dorme 56 horas por semana (8 horas por dia), gasta 14 horas para ir e voltar do trabalho (2 horas por dia), sobram 54 horas semanais. Mas é que dessas horas restantes, as mulheres usam quase metade (21 horas) para cuidar da casa e da família. Ao fim, são cerca de 4 horas por dia que sobram para estudo, para os cuidados básicos próprios (banho, exercícios, médicos e dentistas, só para dar alguns exemplos) e qualquer outra atividade. E o lazer fica em horário nenhum. A vida, de fato, acaba sendo somente o trabalho – especialmente para elas. Seja o trabalho da escala 6x1, seja o da escala 7x0.

Em 1987/88, durante a Assembleia Constituinte, uma das pautas do Lobby do Batom (o movimento que atuava em prol da ampla inclusão de direitos das mulheres e da igualdade de gênero na Constituição) já se referia à igualdade de direitos e de salários para homens e mulheres, licenças maternidade e paternidade, direitos trabalhistas para as empregadas domésticas, direito à creche e direitos reprodutivos. A pauta do trabalho da mulher dentro de casa e fora dela já estava em vista, aliás, muito antes disso.

Mas essa luta não terminou ali. Não basta a previsão constitucional. Afinal, as jornadas de trabalho ainda hoje impactam desproporcionalmente as mulheres. Schuma Schumaher, que participou do processo constituinte, explica que “a igualdade formal proporcionada pela linguagem de direitos não se converte[u] em acesso igualitário ao Estado de Direito ou em aplicação imparcial das leis e dos direitos”[4]. Repensar a escala 6x1 é, justamente, um dos meios para proporcionar essa aplicação igualitária dos direitos.

Se modificamos uma situação que afeta duplamente as mulheres (afinal, as escalas 6x1 e 7x0 se sobrepõem), repensamos a desigualdade que se impõe às mulheres e a ausência de vida além do trabalho, para usar a expressão que virou o nome do movimento liderado por Rick. Dessa forma, talvez a mulher do quadro de Emerson não tivesse que carregar, simultaneamente, a sua família e o seu ofício. Talvez a um homem coubesse o lugar de dividir o peso de carregar os filhos e o mundo.

UMA ADAPTAÇÃO DO TEXTO DE Isabela Amaral e  Renata Souza, em artigo publicado na Revista Fórum

Schuma. O Lobby do Batom, para dar o nosso tom: a Constituição Federal e os avanços no âmbito da família e da saúde. Anais do Seminário Trinta Anos da Carta das Mulheres aos Constituintes. Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ: 2018, p. 67-68.

*Renata Souza é deputada estadual pelo Rio de Janeiro e presidente da Comissão da Mulher da Alerj, jornalista e doutora em Comunicação e Cultura, cria da Favela da Maré, mãe da Rubi.

**Isabela Amaral é professora substituta de Direito Constitucional e Direito Ambiental da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), doutoranda e mestra em Direito Público pela UERJ, advogada e assessora parlamentar.

***Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

 

Comentários
Comentário enviado com sucesso!